Governo Lula infla bilhões de reais ao divulgar recursos federais para socorro ao RS, indicam economistas

Em 18/05/2024
por Gustavo Colferai

Reportagem da BBC News Brasil aponta que autoridades do governo superestimam valores destinados ao estado; também há possível duplicação de valores

Pressionado a reagir com a agilidade à destruição sem precedentes do Rio Grande do Sul, o governo federal tem anunciado dezenas de bilhões de reais em ações de socorro ao Estado, que incluem linhas de crédito (empréstimos a empresas e produtores rurais), recuperação de estradas, compras de medicamentos, auxílio direto a famílias no valor de R$ 5,1 mil e a suspensão do pagamento da dívida gaúcha com a União.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, em reportagem de Mariana Schreiber, avaliam que as medidas têm ido na direção certa, embora ainda sejam insuficientes diante do tamanho da catástrofe –algo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconhece.

O valor total das medidas anunciadas, porém, não está claro, devido a informações imprecisas e contraditórias divulgadas pelo governo. Uma análise feita pela BBC News Brasil – e corroborada por especialistas em contas públicas ouvidos pela reportagem – identificou que conteúdos de canais oficiais, como o portal Gov.br e perfis de autoridades em redes sociais, superestimam o esforço federal no socorro ao Rio Grande do Sul.

Na avaliação de economistas entrevistados, a comunicação da gestão Lula está inflando em dezenas de bilhões de reais os valores federais disponibilizados ao considerar que linhas de crédito anunciadas, operadas por bancos públicos e privados, seriam “investimentos do governo federal” ou “recursos destinados” ao Estado.

Além disso, canais oficiais do governo e de ministros de Estado divulgaram a partir de domingo, 12, que o governo já teria destinado mais de R$ 62 bilhões em ações para enfrentar a crise socioambiental gaúcha, sem detalhar o que está contabilizado nesses valores.

Para um dos especialistas em contas públicas entrevistados, esse cálculo teria contabilizado algumas ações duas vezes, inflando os números em ao menos R$ 7 bilhões.

As críticas vão desde economistas ligados à esquerda, como o consultor do PSOL na Câmara dos Deputados David Deccache, a especialistas com perfil liberal, como o ex-diretor da Instituição Fiscal Independe (órgão do Senado) Gabriel de Barros.

Procurada pela reportagem da BBC, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) não respondeu sobre as críticas de que a comunicação do governo estaria inflando os valores e disse que a Casa Civil responderia sobre as medidas anunciadas.

Já a Casa Civil respondeu que “todos os dados fornecidos pelo governo são claros e transparentes, desde a divulgação das primeiras ações”.

O órgão também disse que “a decisão do Governo Federal de ofertar linhas de créditos é fundamental para o processo de retomada das atividades do setor produtivo gaúcho”, sem responder diretamente sobre as críticas de que o governo estaria divulgando potenciais empréstimos sem recursos da União como “investimentos federais”.

“Reiteramos que todos os esforços são realizados para ajudar o povo gaúcho nesse momento de extrema dificuldade”, acrescentou a Casa Civil.

Já o Ministério da Fazenda informou à reportagem, publicada nesta sexta-feira, 17, que deletou uma post em sua rede social e corrigiu um texto publicado no seu portal de notícias que erronelamente se referiam a um pacote anunciado pelo governo de R$ 50,9 bilhões como “recursos cedidos ao Estado” do Rio Grande do Sul.

A grande maioria desses valores corresponde, na verdade, a linhas de crédito (empréstimos a empresas e produtores rurais) e adiamento de impostos (que deverão ser pagos depois).

Entenda como os valores anunciados como recursos federais estão sendo contestados pelos especialistas.

Linhas de crédito como ‘investimento federal’

Conforme a BBC News Brasil, o primeiro grande pacote do governo federal para o Rio Grande do Sul foi anunciado no dia 9 de maio, com valor de R$ 50,9 bilhões.

Esse montante representa uma projeção do impacto total de um conjunto de medidas que custariam concretamente para o governo o desembolso de R$ 7,7 bilhões.

Deste desembolso, R$ 7 bilhões são para impulsionar linhas de crédito, R$ 200 milhões são para fundos de estruturação de projetos de reconstrução e R$ 498 milhões para pagar duas parcelas adicionais de seguro-desemprego a trabalhadores afetados que já estivessem recebendo o benefício.

O custo real para o governo é menor porque parte dos R$ 50,9 bilhões anunciados inclui antecipação de benefícios que já seriam pagos, como Bolsa Família, antecipação de restituição de Imposto de Renda e adiamento de impostos (que terão que ser pagos posteriormente).

Além disso, a maior parte do pacote (R$ 39 bilhões) é composta por estimativas de quanto pode ser emprestado por bancos em linhas de crédito para pequenas empresas e produtores rurais, a partir de aportes do Tesouro Nacional no valor de R$ 7 bilhões para subsidiar juros e oferecer garantias contra eventuais calotes.

Possível duplicação de valores

O segundo grande anúncio do governo para o socorro do Rio Grande do Sul foi a edição de uma medida provisória no sábado, 11, abrindo crédito extraordinário de R$ 12,2 bilhões para ações no Rio Grande do Sul.

O crédito extraordinário é o mecanismo fiscal que permite ao governo liberar recursos novos, fora dos limites da lei de Orçamento. O uso do instrumento na crise gaúcha foi autorizado pelo Congresso.

Esses valores serviriam para cobrir gastos já anunciados, como os R$ 7 bilhões para alavancar investimentos e os recursos extras para seguro-desemprego, além de bancar algumas despesas novas como atendimentos de emergência da Polícia Federal e da Força Nacional, reposição de remédios, limpeza e reforma de escolas e reconstrução de rodovias.

Com a abertura do crédito extraordinário, canais oficiais da gestão Lula e perfis de ministros nas redes sociais passaram a divulgar uma soma dos “recursos destinados ao Rio Grande do Sul”. Alguns conteúdos falavam que os valores já somavam mais de R$ 60 bilhões, e outros que já somavam mais de R$ 62 bilhões.

Na segunda-feira, 13, de manhã, por exemplo, o portal Gov.br, que reúne notícias da administração federal, publicou um texto dizendo que “o governo federal já destinou mais de R$ 62 bilhões em resposta à catástrofe socioclimática causada pelos temporais no Rio Grande do Sul”, sem detalhar como chegou a esse valor.

A notícia mencionava que parte desses R$ 12,2 bilhões bancariam os custos para alavancar as linhas de crédito anunciadas antes, mas não apontava que isso representava mais da metade do crédito extraordinário (R$ 7 bilhões).

Ou seja, apesar de boa parte do novo anúncio incorporar ações do primeiro pacote de R$ 50,9 bilhões, o texto do governo parece somar esses valores para chegar aos “mais de R$ 62 bilhões” já destinados ao Rio Grande do Sul.

Outro texto do portal Gov.br divulgado na noite de segunda-feira, 13, reforça a percepção de que o governo estava tratando o primeiro pacote e o crédito extraordinário como ações adicionais, sem levar em conta a repetição de parte das medidas.

Essa notícia divulgava o anúncio de suspensão do pagamento da dívida do Rio Grande do Sul por três anos e acrescentava: “As medidas agora apresentadas somam-se aos R$ 50,9 bilhões que haviam sido destinados – entre antecipação de programas sociais e liberação de crédito para o RS – e aos R$ 12,1 bilhões liberados por Medida Provisória para diversos órgãos federais executarem ações necessárias no atendimento aos municípios”.

Para o economista Gabriel de Barros, ex-diretor da IFI, “há clara dupla contagem” nos anúncios do governo.

“Infelizmente, é surpreendente, mas não é inacreditável que o governo esteja inflando os números e fazendo dupla contagem para ‘ganhar a narrativa’ de que não faltou ajuda”, disse em mensagem à reportagem, após analisar os números a pedido da BBC News Brasil.

Ele também não considera correto incorporar as linhas de crédito anunciadas no valor total dos recursos “destinados” ao Rio Grande do Sul.

“Esse recurso não é do governo, é dos bancos, inclusive privados. Isso revela um interesse do governo em se apropriar da narrativa de que ele é o grande provedor da reconstrução do Estado e usar a tragédia como vetor político para se alavancar do ponto de vista eleitoral, o que é totalmente reprovável”, disse ainda.

A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) e a Casa Civil a respeito de como o governo chegou aos R$ 62 bilhões e em relação às críticas a uma possível duplicação na contabilização de recursos, mas não obteve esclarecimento.

A Casa Civil disse apenas que “sempre informou que as medidas somavam mais de R$ 60 bilhões”, indicando que não poderia responder sobre outros ministérios.

Após o pedido enviado pela reportagem na terça-feira, 14, para o governo explicar os valores totais anunciados, o texto do portal Gov.br foi alterado: em vez de dizer que “o governo federal já destinou mais de R$ 62 bilhões em resposta à catástrofe socioclimática”, passou a afirmar que “o governo federal já destinou mais de R$ 60 bilhões em resposta à catástrofe climática”.

A alteração não foi acompanhada de uma nota de correção explicando a mudança.

Confira a reportagem completa da BBC News Brasil clicando aqui.